Por Gustavo Gusmão, sócio de Infraestrutura da EY
Arrisco dizer que “inteligência artificial” ou as iniciais “IA” ou “AI” (em inglês) estão entre os termos mais lidos e ouvidos nos últimos meses. O lançamento do ChatGPT em novembro de 2022 aproximou a IA do grande público. Conforme as pessoas, organizações e governos vêm descobrindo as potencialidades dessa nova tecnologia, surgem – no mesmo ritmo – tentativas de prever (em alguns casos, profetizar) os impactos dela no cotidiano.
A partir das interações humanas com a IA, que se intensificarão nos próximos meses, começaremos a vislumbrar os possíveis efeitos dessa simbiose. Honestamente, não sinto necessidade de ceder ao imediatismo das previsões de como essa tecnologia deve mudar a sociedade, seja para o bem, seja para o mal. Há muito que não sabemos e que ainda iremos descobrir. E está tudo bem! No entanto, pretendo fazer algumas reflexões iniciais acerca desse novo salto tecnológico na vida prática de quem lida com projetos de infraestrutura, em especial PPPs (Parcerias Público-Privadas) e concessões.
Inquestionavelmente, a aplicação das ferramentas de IA vai permitir acelerar substancialmente a coleta e o tratamento de dados na estruturação de projetos. Diversas etapas de concepção de projetos de PPP e concessão serão revolucionadas: pesquisas de origem/destino, projeções de demanda, projetos de arquitetura e engenharia, modelagem operacional, modelagem financeira, estruturação de matriz de riscos e contratos. É fácil perceber como diversas etapas do processo serão otimizadas, fazendo com que os prazos extensos de estruturação de projetos sejam reduzidos drasticamente.
Nos próximos meses e anos, veremos diversas ferramentas que vão sustentar essa transformação digital no setor de infraestrutura. Certamente, as consultorias especializadas e a iniciativa privada terão um papel fundamental nesse processo. Por outro lado, o desafio para os entes públicos é conseguir acompanhar essas transformações e capturar seus benefícios com tempestividade. Aí talvez resida um dos principais pontos de preocupação.
Nas últimas décadas, temos observado como é desafiadora e morosa a incorporação de tecnologias transformadoras e de inovações nos ativos de infraestrutura do país. Apenas para citar um exemplo emblemático, temos a tecnologia do Free Flow nas rodovias, um sistema aplicável às rodovias pedagiadas que dispensa a necessidade das praças de pedágio, permitindo que os pagamentos sejam processados com o veículo em movimento proporcionais à quilometragem percorrida. Os princípios são reduzir o tempo de viagem, aumentar a eficiência do sistema e promover mais equidade entre os usuários. Pois bem, essa tecnologia já existe em rodovias europeias desde a década de 1980 e somente nos últimos anos começou a ser implementada no Brasil.
Em geral, a dificuldade da Administração Pública em absorver essas transformações em projetos de infraestrutura está associada a um ou mais dos seguintes fatores: insegurança jurídico-regulatória, insuficiência orçamentária, ausência de incentivos para inovar na gestão pública (traduzindo esse último ponto: cultura de evitar questionamentos dos órgãos de controle e mitigar risco de responsabilização pessoal por decisões tomadas).
Portanto, diante desse iminente cenário de convívio com a inteligência artificial na estruturação de projetos de infraestrutura, questões importantes me inquietam. Cito aqui apenas algumas delas:
- Será o ente público capaz de transcrever em seu futuros Termos de Referência para contratação de modelagem de projetos as exigências e limitações do uso da IA na prestação do serviço?
- Como os entes públicos valorizarão a experiência e a capacidade na utilização de IA em seus processos seletivos futuros para contratação de empresas especializadas em estruturação de PPPs e concessões?
- De que forma os entes públicos utilizarão a IA na avaliação e revisão de estudos de modelagem de projetos?
- Quais serão os limites de aceitabilidade de estudos que se valerem de IA em sua elaboração?
- A IA deverá trabalhar com um universo maior de dados, que pode resultar em mais complexidade na avaliação das variáveis e cenários referentes aos projetos. Como assegurar que esses aspectos não tornem ainda mais difícil o processo de tomada de decisão pelos gestores públicos e pelas entidades de controle?
- O ente público saberá lidar com o trade-off de poder desenvolver um maior número de projetos renunciando à forma convencional de estruturação e aprovação (que vigora há mais de 25 anos)?
Não restam dúvidas de que todas essas questões serão eventualmente respondidas, mas devemos começar a enfrentá-las desde já. Do contrário, aumentaremos ainda mais o gap entre aquilo que o mundo moderno disponibiliza de soluções para melhorar a eficiência dos serviços e o que é efetivamente ofertado pelo setor público.
*Este artigo foi publicado inicialmente pelo Portal Connected Smart Cities.